terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Branca de Neve


Lavo os cabelos, canto no banheiro. É tão gostoso o prazer que a água proporciona. Sinto-me leve, dou risada, penso na vida, volto no tempo. Lembro-me dos detalhes.
Estava sentado em uma confortável e velha poltrona, na Clínica Renascer.
O contraste do murmurim da varanda, contrastava com o silencio daquele salão.
Ali era como se o tempo tivesse parado.
Dois grandes sofás quase sempre vazios, confortavelmente convidativos, como se esperassem visitas...
A mesa de sinuca com os tacos e coloridas bolas abandonados, lembravam cenas de filmes, que retratavam tragédias, em que os jogadores fugiram de um instante para outro de uma grande catástrofe. Tudo largado.
Quadros sem graça, tortos, empoeirados, sem simetria, agredindo as paredes.
Em cima da mesa de centro, uma grande bandeja metálica, com bastantes cascas de banana. Um cinzeiro transbordando...
A fome passou por ali, e já morta, se instalou na farra da varanda, com risadas, gritos e muita alegria.
Mas derepente, o ritmo do zumzumzum mudou. Vieram gritos de deboche, de arruaça.
Corri me misturando aos outros na varanda, tentando identificar o diferente, o motivo da mudança.
Era uma jovem e bonita senhora. Alta, linda. Chamava atenção, por seu porte, o visual diferente. Estava vestida de princesa, de Branca de Neve.
Saia da secretaria da clínica.
Pensei logo, de forma feliz e animada, que era alguma atividade lúdica
em homenagem ao grande artista Augusto Boal (criador do Teatro do oprimido), que falecera há pouco.
Mas logo vi que não. Era mais uma paciente como nós todos. O motivo das fortes risadas, eram as roupas, o figurino, o assumir o personagem.
A diferença é que seus sintomas não se expressavam com a drogadição ou depressão. Não havia choro, tristeza, isolamento e arrependimento.
Ela era uma princesa, pura alegria, linda, contagiava o ambiente.
Os outros pacientes, de forma cega e preconceituosa, se sentiram sãos, com a suposta "loucura" da princesa.
Fiquei a observá-la, de longe, e ao deboche alheio. Não fui capaz de defende-la. O novo, o diferente, era simplesmente observado.
No dia seguinte, no café da manha, aos poucos o refeitório foi se esvaziando.
Ficamos eu e Branca de Neve.
Ela com o semblante sereno me perguntou meu nome. Parecia a vontade em sua realeza.
Me apresentei, de forma tímida, cheio de dedos fui a sua mesa.
Ninguém havia sentado com ela. Afinal não era mais “a” novidade. Era mais um, em um outro dia de internação.
Aos poucos o papo foi fluindo, ela sensível, falou de sua casa, de seus cachorros, de seus filhos, de seu marido, da rotina do dia a dia.
Então pensei, aonde se encaixaria o personagem de Branca de Neve, e mais ainda, onde estariam os 7 anões.
Então, mais a vontade, a questionei.
Ela de forma pedagógica, me ensinou sorrindo, o óbvio.
"Amigo, sou Branca de Neve, pois trago comigo os 7 anões".                                            E como um bobo, questionei, “aonde estão?”
Ela respondeu: Sou a Mestre, quando cuido de minha casa e de minha família.
Sou o Feliz, vivendo as belezas da vida.
Sou Zangada, quando algo me aborrece.
Sou Dengosa, em minhas relações.
Sou Soneca junto aos lençóis.
Sou Atchim, quando estou dodói.
Sou o Dunga, em meu silêncio e meu lado criança.
Parei e pensei, “e eu,quem sou???????”
Será que me represento, ou interpreto algum personagem???????
Ficou minha amiga, minha companheira de papo.
Aprendi com ela a assumir minhas vontades.
Poder falar, sem ser reprimido pelos risos.
Saudades de Branca de Neve e seus anões.

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